Ouvi dizer que foi ele: Quando a justiça se apoia em ecos e não em provas

abril 07, 2025


No tribunal da vida real, as palavras têm peso. E no processo penal, elas podem valer mais do que deveriam. Há um fenômeno tão grave quanto negligenciado no sistema de justiça criminal brasileiro: decisões judiciais que mandam réus a julgamento pelo Tribunal do Júri com base em depoimentos frágeis — pior, baseados no famigerado "ouvi dizer".

Você já parou para pensar que alguém pode ser submetido a um julgamento popular — onde há possibilidade real de ser condenado a décadas de prisão — porque uma testemunha disse que ouviu de alguém que foi o acusado quem cometeu o crime?

Sim. Isso acontece. E mais do que deveria.

O eco das ruas dentro do Fórum

O chamado testemunho de “ouvir dizer” (ou testemunho indireto) é aquele em que a pessoa não presenciou o fato, mas apenas repete o que outra pessoa lhe contou. Ele não tem valor probatório robusto. No entanto, muitos juízes, na fase de pronúncia — aquela que decide se o réu vai ou não a julgamento pelo júri — aceitam esse tipo de “prova” como suficiente.

É como se a voz da rua valesse mais que o silêncio da prova técnica.

Essa prática desafia diretamente a lógica do sistema penal. Afinal, quem vai ao Tribunal do Júri deveria estar lá porque há indícios suficientes de autoria e materialidade, não porque “fulano falou que ouviu sicrano dizendo”.

Pronúncia não é condenação — Mas machuca como se fosse

Alguns juízes justificam: “A pronúncia não é uma sentença condenatória, é apenas um juízo de admissibilidade”. Verdade. Mas não nos enganemos: ser pronunciado já coloca o réu no corredor da infâmia.

Ele será levado a julgamento popular, diante de leigos — cidadãos comuns, influenciáveis pelo apelo emocional, pelo clamor público e, muitas vezes, pelo preconceito social. Basta um erro na condução da acusação ou uma narrativa convincente, ainda que sem base fática sólida, para destruir uma vida.

O que diz a jurisprudência?

O Superior Tribunal de Justiça já se manifestou inúmeras vezes no sentido de que testemunhos indiretos não podem fundamentar condenações, salvo se corroborados por outros elementos de prova. Mas, estranhamente, quando o assunto é a pronúncia, o rigor afrouxa. E é aí que mora o perigo.

A Constituição Federal de 1988 garante a todos o direito ao devido processo legal, à ampla defesa e ao contraditório. Como conciliar isso com decisões baseadas em relatos de terceiros, não confirmados, não analisados com seriedade, e, pior, não presenciados?

A voz do acusador ecoando mais alto que a lógica

Não raro, os próprios promotores utilizam esse tipo de testemunho para preencher lacunas probatórias gritantes. E, em vez de serem rechaçados de pronto, encontram eco em decisões judiciais que deveriam prezar pela seriedade da acusação.

O processo penal é um espaço técnico. E a técnica deve impedir que a emoção, o senso comum ou a vontade de “dar uma resposta à sociedade” passem por cima de garantias fundamentais. Testemunho de “ouvi dizer” é ruído. E ruído não pode condenar.

A pronúncia é uma decisão grave. Ela deve ser fundada em elementos concretos, não em boatos reciclados por terceiros. Quando o Judiciário admite esse tipo de "prova", contribui para um sistema em que a vida e a liberdade de alguém podem ser decididas com base em meras suposições — ou, pior, em fofocas.

Não se trata de proteger culpados. Trata-se de garantir que apenas os verdadeiros responsáveis enfrentem o julgamento, e que isso ocorra sob bases sólidas, não sobre o pântano dos “ouvi dizer”.

No Direito Penal, a dúvida deveria proteger. Mas quando se condena com base em ecos, o que se ergue não é justiça. É ruína.

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